O governo de São Paulo está descumprindo ordem judicial de manter assistência domiciliar com enfermagem 24 horas, para uma família de Birigui (SP), que tem uma criança de 12 anos com MAV (Malformação Arteriovenosa Cerebral), uma condição rara e que exige muitos cuidados.
A família tem passado noites acordada e teme que algo ocorra com a criança, que só recebeu alta para ir para casa com a condição de ter um home care – atendimento médico domiciliar que envolve uma série de profissionais e cuidados com o paciente.
Vários boletins de ocorrência foram registrados na delegacia. O DRS (Departamento Regional de Saúde) de Araçatuba, órgão da Secretaria de Saúde do Estado, foi acionado e enviou uma funcionária para averiguar a situação, que ainda não foi resolvida.
A mãe Leuzilene Alves Carneiro Cruz, 40 anos, conta que a filha nasceu saudável e até os 11 anos nunca tinha tido problemas de saúde. Corria, brincava, frequentava a escola, tinha uma vida comum para a idade. No entanto, ela notou o que acreditava ser sinais de estrabismo e uma pálpebra mais baixa no outro direito, por isso procurou um oftalmologista, que a orientou a procurar um neurologista, pois não se tratava de problemas na visão.
O especialista pediu um exame de ressonância magnética, onde foi detectada a MAV. Era novembro de 2020, em plena pandemia de novo coronavírus, e a família foi encaminhada para acompanhamento de um neurocirurgião, em Araçatuba.
Devido à localização da MAV e os riscos de uma intervenção cirúrgica (seria inoperável), a opção do neurocirurgião foi apenas acompanhar o caso.
As complicações, no entanto, começaram a evoluir rapidamente, com dificuldade para andar e o acúmulo de líquido dentro do cérebro (hidrocefalia), o que a levou para a implantação de uma válvula. Mesmo assim, a criança conseguia prosseguir nas suas atividades, como a escola, com apoio de um tutor.
Em 27 de fevereiro de 2022, a menina sofreu um AVC (Acidente Vascular Cerebral) Hemorrágico e precisou ser hospitalizada. Foram cinco meses internada em leito de UTI na Santa Casa de Araçatuba, devido ao risco de novos sangramentos, que ainda existe. A menina passou por uma traqueostomia, se alimenta apenas por sonda e perdeu todos os movimentos.
A condição para que a criança recebesse alta e fosse para casa foi a implantação de um home care, conquistado por meio de uma ação judicial solidária entre município e Estado. Segundo a família, a Prefeitura ficou responsável por oferecer os materiais e insumos necessários ao tratamento da criança, o que vem sendo cumprido, e o Estado, a equipe de profissionais para o home care.
Na casa humilde da família, um quarto foi preparado com a ajuda e doações de amigos, para receber os aparelhos e mobiliário hospitalar. A alta foi dada em 27 de julho de 2022.
A primeira empresa de home care contratada era de Araçatuba e cumpriu com o trabalho, aliviando o sofrimento da família, que passou a ter uma nova rotina. Além da menina, o casal tem outros três filhos, dois maiores de idade (20 e 22 anos) e mais uma menina de 9 anos.
O problema foi a troca da empresa, ocorrida neste mês, quando o serviço passou a ser prestado pela JC Soluções em Saúde Domiciliar, com sede em São Bernardo do Campo. Conforme divulgado pelo Departamento Regional de Saúde de Araçatuba, a empresa ofereceu a melhor proposta no pregão eletrônico e foi contratada por R$ 268,8 mil (R$ 17,9 mil mensais), para prestar o serviço por 15 meses.
Conforme o edital, a contratação prevê prestação de serviço para assistência domiciliar home care (enfermagem 24 horas diárias (auxiliar de enfermagem), visita médica semanal, visita nutricionista mensal, terapia ocupacional uma vez ao dia por uma hora, fonoaudiologia duas vezes por semana por uma hora e fisioterapia motora e respiratória três vezes ao dia por uma hora.
O problema maior está na contratação dos enfermeiros (quatro no total, com turno de 12 horas de trabalho por 36 de descanso), que não aceitaram as condições ofertadas. Três abandonaram o serviço.
Como o caso da criança é de altíssimo risco, os demais profissionais temem que algo possa acontecer durante o atendimento sem a presença da enfermagem para ajudar nos primeiros socorros e também não estão prestando o serviço com a frequência contratada.
“Ela tem a saturação monitorada o tempo todo e já precisou de socorro durante as terapias, porque a saturação cai rapidamente. O problema é que não sou enfermeira e não sei o que fazer nessas situações”, conta a mãe, que tem feito as aspirações da traqueostomia várias vezes ao dia, algo que ela não tem habilidade.
A família afirma que a JC não enviou nenhum responsável à casa para conhecer a paciente e as condições para oferecer o serviço, tendo contratado e locado até os equipamentos oferecidos pela empresa anterior. O contato é apenas por um número de telefone, cujo atendimento é em horário comercial.
Na presença da reportagem e com o celular na função viva-voz, a mãe ligou na empresa para perguntar sobre a assistência dos enfermeiros. A pessoa responsável pelo caso, no entanto, explicou que a empresa está com dificuldade para recrutar profissionais. Como solução, ela orientou que a família levasse a menina ao pronto-socorro, para que lá fosse feito o atendimento.
Leuzilene contou que na sexta-feira passada, quando se viu sozinha com a menina, ela ficou desesperada por não saber o que fazer e ligou na empresa, recebendo essa mesma orientação. “Na hora, sem saber a quem recorrer, eu levei minha filha. Assim que chegamos no pronto-socorro, a médica que estava no atendimento explicou que o caso dela não era para eles e que minha filha corria alto risco de contaminação hospitalar. Eles me ensinaram como fazer a aspiração, porque eu não sabia como fazer e é algo que não pode deixar de ser feito várias vezes ao dia, e eu voltei para casa com ela”.
Desde então, apenas uma das quatro enfermeiras tem comparecido, ficando na casa das 19h às 6h. Nas 36 horas posteriores, os cuidados ficam todos para a família. Durante a entrevista, apenas os pais estavam com a menina.
Como a criança precisa de atenção 24 horas por dia, o pai da menina, José Carlos Fagundes, 45 anos, tem faltado ao trabalho para ajudar a esposa nos cuidados com a filha. Ele é pintor em uma indústria metalúrgica, porém teme perder o emprego. “Meu patrão me dá muito apoio, nos ajudou com os materiais para construírmos o quarto para ela, mas eu sou funcionário, tenho minhas obrigações e não estou cumprindo com elas. Só que eu não posso deixar minha filha sozinha com a mãe”, disse.
Leuzilene trabalhava na linha de produção de uma fábrica de meias, porém precisou se desligar do emprego quando a filha ficou doente.
A reportagem entrou em contato com a Secretaria de Saúde do Estado questionando o descumprimento da medida judicial. Em nota, o DRS (Departamento Regional de Saúde) de Araçatuba informou que, assim que soube do fato, notificou a empresa contratada para que cumpra, de imediato, o serviço de forma integral.
“O DRS reforça que tomará todas as medidas cabíveis para que a assistência à paciente I.A.F.C. seja garantida pela empresa contratada”, resumiu.
Não foram informados detalhes do contrato e nem possíveis penalidades, conforme questionado.
O que é a MAV?
Pouco comum, a MAV é uma doença congênita associada a fatores genéticos, que geralmente se manifesta entre os 20 e 30 anos de idade. As manifestações variam segundo o tamanho, localização e configuração das malformações. As mais comuns são as hemorragias.
Segundo o site da HCor (Associação Beneficente Síria), os sintomas da MAV podem ser de dores de cabeça a convulsões, perda de força de um lado do corpo até hemorragias cerebrais, o que é mais grave, como é o caso da criança de Birigui.
Normalmente, o paciente procura o médico por ter convulsões ou crises convulsivas parciais, conhecidas como crises de ausência, que é, por exemplo, quando uma pessoa está falando e, de repente, fica fora do ar um curto período e volta como se nada tivesse acontecido.
A enfermidade não é fácil de explicar. De forma simplificada, é possível dizer que se trata de uma ligação direta e anormal entre uma veia e uma artéria. Assim, enquanto as veias são mais finas e transportam o sangue usado (sem oxigênio) de volta para o coração, as artérias, vasos mais robustos, como uma parede muscular que suporta maior pressão sanguínea, levam sangue oxigenado do coração aos órgãos. Para ligá-las, normalmente, existe uma rede de capilares, pequenos vasos sanguíneos que ficam dentro dos tecidos. Uma das funções deles é evitar que o sangue arterial (com pressão alta) passe para dentro do sangue venoso (pressão bem mais baixa).
Quando o paciente tem malformação arteriovenosa, não há a rede de capilares para amortecer a ligação entre elas ( ver infográfico ).